sábado, 5 de fevereiro de 2011

O lado emocional

Na entrevista a seguir, Rosana Manchon, psicóloga clínica, especializada em pacientes com diabetes, fala das grandes questões emocionais que marcam a trajetória do portador de diabetes e sobre suas relações com a família, os amigos e os parceiros.
Editora Lua
Alguns aceitam o diabetes e só dão a ele a atenção necessária – cuidam-se, controlam-se, mas sem fazer disso o tema de sua vida. Outros se sentem vítimas da situação e exigem mobilização de todos à sua volta. Há, ainda, os que não querem encarar a dificuldade e, por isso, ignoram a sua existência.
Podemos listar muitas maneiras de se lidar com o diabetes. Maneiras positivas e negativas, construtivas e destrutivas. Como acontece com a maioria das questões humanas, tudo depende de cada um. Um mesmo desafio provoca diferentes dúvidas e sentimentos em diferentes pessoas.
Essa variedade de pontos de vista foi notada por Rosana Manchon, psicóloga clínica de São Paulo que vem atendendo pacientes com diabetes nos últimos 20 anos. Trabalhando na Associação de Diabetes Juvenil (ADJ) ou em contato com ela desde o início de sua carreira, Rosana acumulou experiência, em particular com adolescentes diabéticos tipo 1. Na entrevista a seguir, ela fala das grandes questões emocionais que marcam a trajetória do portador de diabetes e sobre suas relações com a família, os amigos e os parceiros.

Sabor&Vida Diabéticos – Conte um pouco sobre seu percurso profissional.
Rosana Manchon — Trabalho com clínica desde 1986. A ADJ foi, praticamente, meu primeiro local de trabalho. Ingressei na psicologia trabalhando com diabetes. Mais tarde, fiz uma especialização em psicossomática, o que me aproximou mais ainda dos temas relacionados à doença crônica. Na ADJ, trabalhava com grupos semanais, com os jovens e os pais. Na verdade, fui trilhando a minha história profissional muito de mãos dadas com o diabetes. Cursei, ainda, uma pós-graduação ligada a distúrbios de alimentação e fiz um aperfeiçoamento em terapia de casais.
Sempre trabalhei em equipes multidisciplinares. Recentemente, interessei-me pela medicina tradicional chinesa e a acupuntura.

SVD – Você continua atendendo muitas pessoas com diabetes?
RM: Hoje, no consultório, 60% dos meus pacientes têm diabetes.
Atendo mais portadores de diabetes tipo 1. Geralmente, eles vêm indicados pela ADJ ou por colegas, como médicos e nutricionistas. Na época em que comecei a trabalhar, pouco se fazia com relação à educação e ao atendimento psicológico em diabetes. Cheguei a explicar a famílias de diabéticos como se esteriliza seringa na panela de pressão. Os alimentos dietéticos não existiam, era tudo mais complicado. Os serviços de apoio ao paciente diabético nos hospitais era precário e acontecia apenas nos hospitais-escola. Infelizmente, ainda se nota um pouco dessa precariedade. Mas está melhorando. Enfocar a educação é fundamental, pois você só se trata a partir do momento em que conhece a situação.

SVD – Por que se percebeu que o apoio psicológico era necessário para o diabético?
RM: Principalmente, porque esse apoio poderia facilitar o processo de aceitação da doença e, conseqüentemente, de adesão ao tratamento. A palavra-chave é aceitação. Você não se compromete a um tratamento se não aceitá-lo.
Era primordial o trabalho em equipe multiprofissional. Um só profissional da área de saúde não abarca todos os aspectos do paciente. Os profissionais se complementam.

SVD – Existe uma questão emocional central para o portador dediabetes? Por que o paciente procura apoio psicológico?
RM: A maior parte dos pacientes que vem buscar apoio psicológico acaba percebendo que o motivo que os trouxe não é o motivo que os fará dar continuidade ao tratamento.
A pessoa vem por uma razão, mas acaba ficando por outras que vai percebendo nas consultas. Eu tenho muito cuidado para não rotular o portador de diabetes. Temos que ter critério, mesmo para falar da questão da aceitação, porque isso depende de muitos aspectos. Se o diabetes aparece em um bebê, por exemplo, a aceitação dele estará extremamente relacionada à aceitação de seus pais. É diferente de alguém que é diagnosticado aos 18 anos, quando já há uma estrutura e uma história de vida, e ele já não depende mais totalmente do referencial dos pais. É muito sério generalizar: “o portador de diabetes tem as seguintes características”.
Trata-se de um indivíduo com um mundo interno próprio. Há muitos fatores que influenciam a relação do portador com o seu diabetes: o ambiente, a família, a idade... Mesmo o momento em que a família se encontra pode influenciar, como crises financeiras, conjugais etc.

SVD – Acontece de o portador de diabetes tipo 2 mostrar sinais de culpa, por se achar responsável pelo desenvolvimento da doença?
RM: Nunca percebi essa culpa. Essa coisa “eu não me cuidei e isso aconteceu”. O que eu percebo é que não existe uma preocupação que deveria haver nos pacientes tipo 2. O portador tipo 2 costuma pensar que grave mesmo é quando se tem de tomar insulina.
E talvez seja por isso que vemos que o maior número de complicações aparece mesmo no tipo 2, devido à negligência dos pacientes. Já ouvi muito: “o meu diabetes é tranqüilo, não tomo nem insulina, só tomo remédio”. Mas, ao fazer uma ponta de dedo em um paciente assim, acontece de ele estar com 400 mg/dl de glicose.
Porém, como esses pacientes não tomam insulina, também não sofrem a hipoglicemia, ou seja, não sentem realmente a doença. Porque esse é um ponto importante: noto o medo que os diabéticos têm da hipoglicemia.

SVD – Como é esse medo?
RM: Como o paciente diabético faz a leitura da hipoglicemia é uma coisa que me chama a atenção. Alguns preferem manter-se descontrolados, hiperglicêmicos, para não passar por essa sensação, esse mal-estar. Porque a sensação de hipoglicemia severa é mesmo muito desagradável, de perda de controle, de morte iminente. Às vezes os pacientes entram em questionamentos, principalmente os pacientes adolescentes que,  por serem mais imediatistas, vivem o aqui e agora. A noção de temporalidade para eles é outra. Eles se perguntam: por que vale a pena se controlar, já que eu posso passar mal? Mas aí é que entra a educação, o conhecimento. Se o paciente souber manejar todos  os instrumentos que tem à mão, que não são poucos, ele consegue diminuir a incidência de episódios hipoglicêmicos. A insulina de longa duração veio para minimizar muito essa dificuldade.

SVD – E o relacionamento com as pessoas próximas no dia-a-dia, como funciona?
RM: Também vai depender. Se o diabetes fizer parte da vida do indivíduo de uma maneira equilibrada e positiva, ele vai chegar para uma turma de amigos e dizer: “Gente, sou diabético. Se, por um acaso, eu começar a não responder na velocidade esperada, parecer estranho ou começar a passar mal, me coloquem algo doce na boca, porque é provável que eu esteja tendo uma hipoglicemia”. A verdade é que a gente vende o peixe da maneira como quer vender. Ou você passa a visão do doente, de um ser dependente, ou você passa a visão de um ser humano como outro qualquer, que tem suas dificuldades e particularidades.

SVD – Qual é o papel dos pais no relacionamento da criança com o diabetes?
RM: Esse é um papel fundamental. Pais neuróticos, que superprotegem a criança e a tratam como doente, acabarão passando a impressão de que ela realmente é uma vítima. É possível que ela acabe abraçando esse papel de “doente”, tornando-se insegura e dependente. Existem basicamente dois grupos principais de tipos de pais: os superprotetores e os que rejeitam a situação. Infelizmente, ambos são maléficos para o desenvolvimento da criança diabética. Os que rejeitam e fingem que a doença não existe acabam dando apenas um mínimo de suporte necessário. Como os pais são os primeiros grandes modelos, a criança percebe que deveria estar sendo cuidada e então pensa: “se a minha mãe não liga, por que vou ligar?”. E aí há também uma via de mão dupla, pois a criança também pensa: “se ela não liga, é porque eu não devo ser tão importante”. Há, por outro lado, famílias que exageram nos cuidados e acabam transformando a casa em reduto diabético – ninguém come doce porque um dos membros não pode comer.
Mas isso é muito negativo, já que o diabético só se sentirá culpado, achando que tirou um prazer das pessoas que ama. O ideal é que os pais sejam equilibrados, que se comprometam com a educação em diabetes e que, aos poucos, passem as responsabilidades para o jovem, para que ele se torne um adulto independente.

SVD – A aplicação de insulina ainda causa algum choque ou preconceito no âmbito das relações sociais?
RM: Infelizmente, ainda há muita falta de informação e alguns portadores de diabetes usufruem dessa desinformação, dessa condição de doente, porque às vezes obtêm ganhos emocionais com isso, mesmo que esses ganhos sejam questionáveis. Que há discriminação, há. Muitos adolescentes são confundidos com usuários de drogas, por exemplo. Mas, se toda vez que o diabético percebesse essa falta de conhecimento por parte do outro, explicasse do que se trata o diabetes e o seu tratamento, ou seja, esclarecesse o uso da seringa, mais informação e menos preconceito existiria. Em um ambiente em que todo mundo conhece a pessoa, como no trabalho e na escola, aplicar a insulina acaba se tornando uma coisa normal, incorporada ao dia-a-dia. Novamente, é a história de como se está vendendo o peixe. Que portador de diabetes você vai querer ser?

SVD – Você acredita que existam fatores psicológicos que influenciem o diabetes?
RM: Hoje, a dicotomia corpo/mente está descartada. O ser humano é um todo. Temos de olhar o paciente de maneira holística, total.Não existe comprometimento físico que não comprometa também a esfera psicológica, e viceversa. Para qualquer alteração física, existe um paralelo emocional.

SVD – Mas e o aparecimento da doença, pode estar relacionado a fatores emocionais?
RM: É possível analisar isso de diferentes maneiras, dependendo de sua formação, de um ponto de vista mais ou menos organicista. A polêmica continua e ainda vai continuar. A minha verdade é que não existe nada isolado, ou seja, acho que não existe comprometimento físico sem influência emocional. Você pode nascer com a predisposição para, mas, se vai ou não desencadear, pode ter a ver com fatores não apenas físicos. Muitas crianças que atendi, especialmente quando trabalhava na ADJ, tiveram seus diabetes desencadeados em épocas de luto, como a perda dos avós ou de um bichinho de estimação, e de separação dos pais. O que é visível é que situações de estresse ou de qualquer alteração emocional, inclusive a alegria, fazem variar a glicemia.

SVD – O diabético que faz terapia pode lidar melhor com esses aspectos emocionais?
RM: Sim. Ele vai saber se proteger melhor. Uma adversidade não vai impactar de forma tão acentuada quanto em uma pessoa não trabalhada emocionalmente.

SVD – No caso das mulheres diabéticas que querem engravidar, o que você já notou?
RM: A gestante não muda muito, ou seja, ela grávida é como é normalmente. Se for consciente e cuidadosa, continuará sendo assim. Ela saberá lidar com os inúmeros exames e a maior quantidade de aplicações de insulina. Já com aquela que achava que ia mudar só quando engravidasse, é mais difícil, porque ninguém muda do dia para a noite. Existe, claro, uma motivação maior, por estar gerando um novo ser, mas não necessariamente isso irá transformá-la.

SVD – No relacionamento do casal, quando um dos dois é diabético, a situação é especial?
RM: Mais uma vez, depende. Se a pessoa entra na relação para ser cuidada, é um prato cheio, já que existe algo concreto – no caso, o diabetes. Ela pode fazer uso disso da maneira que lhe for conveniente. Agora, se você quer uma relação madura, onde não existe essa necessidade de ser cuidado, o parceiro vai se importar como se importa com outros aspectos. Saber se a pessoa está fazendo as picadas de dedo, se está aplicando a insulina, tudo isso aparece naturalmente no dia-a-dia, já que são preocupações normais. Seria apenas mais uma parte do pacto que é o casamento.

2 comentários:

  1. Essa moça é muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito legal!
    No último grupo de crianças diabéticas que fui na ADJ, era com ela a conversa!!!

    Amei!

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  2. Muito legal a entrevista. Estou espalhando no meu blog!!!

    Bjinhus

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